sexta-feira, 29 de junho de 2007

Na praia de Ian McEwan

Stefania Chiarelli

Às vezes mais vale escrever enquanto a gente está sob o impacto recente de uma leitura, ainda no clima e na atmosfera de um livro, do que esperar aquela sensação decantar. Porque ela aos poucos se esvai, não tem jeito. Já me aconteceu de terminar um livro desamparada quando virei a última página. Solução: emendar em outro do mesmo autor. Encerrei Os Maias e tive correndo de ler O primo Basílio para não padecer de certa síndrome de abstinência de Eça de Queiroz. Foi bom. Recomendo.

Daí a vontade de registrar logo minhas impressões sobre Na praia, de Ian McEwan, antes que elas se percam na próxima esquina. Primeiro, porque deu vontade de me jogar logo em outro livro dele, o mesmo que ocorre – geralmente – quando leio Philip Roth e Paul Auster, só pra ficar em autores contemporâneos de língua inglesa. A restrição fica por conta de Viagens ao scriptorum, deste último, que não me arrebatou como os outros, a despeito dos imensos elogios que eu havia lido sobre o livro.

Na praia me trouxe essa sensação de arrebatamento. Florence e Edward, os jovens protagonistas, têm alma e encanto. Seus revezes e angústias são humanos e ao mesmo tempo muito particulares, ligados ao contexto em que se desenrola a ação. Muito já se disse a respeito da década de 60 em que se passa a história, da repressão sexual e do tabu em relação ao tema do sexo, e de personagens que se vêem incapacitados de extrapolar essas amarras tão sólidas em plena lua de mel. Após namoro de um ano, Florence e Edward, jovens e virgens, se casam e partem para um hotel na praia de Chesil, Inglaterra. Ele, estudante de História e cheio de planos para o futuro e ela, violinista talentosa, estão apaixonados. Mas não foram felizes para sempre. Enquanto a fábula tradicional se interrompe aí, a narrativa de McEwan elege esse momento como ponto de partida: como iniciar uma vida sexual com tamanha expectativa?
Sexo e desejo são o motor de toda a trama, e a sofisticação de McEwan está em externar esses estados de euforia e inibição dos personagens de modo extremamente sensível. "O sexo e a guerra são territórios já muito explorados, e é preciso encontrar algum canto em que a grama não esteja tão pisoteada", disse em entrevista o escritor. A metáfora da grama não poderia ser mais inglesa, e de fato McEwan encontra esse espaço singular em sua prosa, tratando seus personagens com delicadeza, sondando em que medida “a época os retinha” (p. 19).
Edward tem de discutir a relação na praia do hotel escolhido para a viagem dos recém-casados. O cenário é metáfora para o fracasso do romance entre os dois, paralisados pela angústia de Florence de finalmente ir para a cama com o marido. Com travo amargo o livro se encerra. Acompanhamos o destino dos personagens nas décadas seguintes e, em poucas linhas, percebemos que o bonde da história andou, os costumes afrouxaram, e prevaleceu nessa história a frustração e o fracasso. Mobilizados pelo trauma da única noite de casados, os protagonistas seguem suas vidas, mas, ao olhar para trás, o agora sessentão Edward conclui a inutilidade da pressa e da cobrança. Não há reparação – outro título do mesmo autor - apenas a constatação da perda da inocência.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

A morte do leitor - 2

Giovanna Dealtry



A questão realmente atordoante é onde se coloca esse leitor contemporâneo. De que formas lemos? Ou perdemos a capacidade de ler? De reconhecer caracteres, signos e formular sentidos, ainda que temporários, para esses vislumbres. Não por acaso cinema, filosofia, literatura andam pesquisando ultimamente as fronteiras entre cegueira/visão. A lista é imensa, passando por Ensaio sobre a cegueira, Dançando no Escuro, Janela da Alma, A pessoa é para o que nasce etc. Meu amigo Sérgio Mota escreveu uma tese justamente sobre esse tema: não estaremos todos nós diante da proliferação excessiva das imagens nos tornando incapacitados para a leitura? Parece simples, a princípio, contrapor imagem e texto e responsabilizar nossa era de paraísos simulacrais pelo abandono da nossa capacidade de ler. No entanto, entre uma palavra e outra sempre há espaço. O respiro. Pausa interna ou externa, momento em que verdadeiramente a leitura se dá. A cidade video-clipe não permite pausas, só cortes secos e raras fusões. Ler é identificar lacunas?








(Un chien andalou - Buñuel/Dali - 1928)

domingo, 24 de junho de 2007

A morte do leitor - 1

Giovanna Dealtry

Inúmeros escritores de diferentes nações e épocas, como Machado, Borges ou Calvino, reservaram um espaço significativo para o leitor em suas obras. Seja como personagem – como em “Se um viajante em uma noite de inverno”, de Calvino – ou como alvo dos piparotes machadianos. Em um sentido mais amplo, o leitor, real ou ficcional, revela os cruzamentos entre o fazer literário e a própria leitura. O isolamento, a paixão silenciosa, a concentração são temas caros tanto ao escritor quanto ao leitor. Cortazar no seu célebre conto “Continuidade dos parques” borra justamente essas pretensas e seguras fronteiras entre leitor e literatura.

“Recostado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse , de quando em quando, o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos.”

Aí está o leitor pego em flagrante em sua intimidade erótica com o próprio livro. O final, todos sabem: enquanto o personagem leitor encaminha-se para o desfecho do enredo, nós – e ele também? – descobrimos aterrorizados que a literatura invade o espaço pretensamente seguro do ato de ler. De costas para a porta que tanto o incomoda o leitor lê sua própria morte se aproximando. Ler não tem nada de reconfortante e seguro, e muito menos nos leva a um mundo em separado do real, ainda que todo o leitor anseie por estar do lado de lá dessa continuidade dos parques. A literatura que realmente vale a pena é sempre uma traição para com o leitor. Não é à toa que em “A morte e a bússola”, de Borges, o detetive, exímio leitor, termina caindo na armadilha que o leva à própria morte. Ler deixa de ser uma mera atividade de distração, de transposição para um outro universo e torna-se um ato de questionamento do próprio leitor, um jogo – por isso o erotismo – de sedução e perseguição entre o escritor e o leitor, agora não mais parceiros, mas desafiantes.


terça-feira, 19 de junho de 2007

Nome de família: a América indiana de Jumpa Lahiri e Mira Nair



Stefania Chiarelli


Pés escolhem caminhos, atravessam fronteiras, se vestem, se despem, esfriam, esquentam, se enfeitam, se machucam. Tantas emoções e quase sempre ficam lá, escondidos em um sapato ou sandália qualquer. Mas em Nome de Família (The Namesake, Índia/Estados Unidos, 2006) a diretora Mira Nair acertou ao mirar sua lente para esses personagens pouco comuns. O filme conta a história do estudante Ashoke Ganguli (Irrfan Khan), que sobrevive a um acidente de trem na Índia e vincula o quase-milagre ao exemplar de O Capote, de Nikolai Gogol, que tinha em mãos no momento do descarrilamento. Além de redobrar seu afeto pelo escritor, o episódio o inspira a conhecer outras terras. Em Calcutá, Ashoke escolhe uma noiva, Ashima (Tabu), e se estabelece como pesquisador nos Estados Unidos. Quando seu primogênito nasce, o casal dá a ele o nome de Gogol. A intenção é que esse seja apenas o nome pelo qual será tratado em família. O "nome bom", o oficial, deverá ser escolhido pela avó, em uma carta que não chega nunca, e Gogol permanece Gogol. O tempo passa, e o jovem acaba se envolvendo com a norte-americana Max (Jacinda Barrett). O romance constrange e assusta seus pais. O próprio rapaz se convence das dificuldades de manter um namoro multicultural e acaba se apaixonando, mais tarde, por uma moça de ascendência indiana, o que termina por revelar que a origem comum não é garantia de um relacionamento feliz.


Para contar a história desses personagens, os pés surgem nus, levando a poeira da rua, em toda a sua naturalidade, despojados de artifício, como nas cenas de Ashima e suas unhas quebradas, dedinho torto, delicada tornozeleira. É através deles que se dá o primeiro contato da personagem com Ashoke: ao experimentar os sapatos americanos do futuro marido, em ato que mistura transgressão e curiosidade, os pés da garota indiana se sentem confortáveis e seguros. Mais adiante, o enquadramento revela a beleza da pintura dos pés para o ritual de casamento, adorno que permanecerá por vários dias. Na cena em que, no inverno americano, reaparecem descalços, como na Índia, revelam o desamparo da personagem ao perder o companheiro de toda vida. Da mesma forma, para Gogol, é ao se deparar com os sapatos do pai no quarto impessoal da universidade em que fora lecionar que irrompe a emoção. O toque dos pés descalços nos sapatos do pai morto agudiza a dor e a culpa. Nos pés e na perna manca o pai trazia as cicatrizes do acidente que definiria os rumos familiares. Paul Valéry afirmou que não há nada mais profundo do que a pele, e essa sensibilidade corporal ocupa papel central no belo filme de Mira Nair.

Nome de família foi adaptado do romance O xará (2004), de Jumpa Lahiri. Nascida em 1967, a autora recebeu o Prêmio Pulitzer em 2000 por Intérprete de males, livro de nove contos em que o confronto entre culturas já aparecia. “Esta casa” e “Intérprete de males” são narrativas em que o conflito surge com consequência desse embate. Jumpa Lahiri explora essa condição multicultural para construir personagens delicados e, sobretudo, humanos. A opção de focar esse espaço doméstico, dos pequenos dramas e acontecimentos da vida do imigrante ou de seus descendentes, revela sutilezas que enriquecem a narrativa, já que tanto a escritora quanto a diretora tem familiaridade com o tema. O ambiente acadêmico revela essa faceta da presença indiana no espaço universitário norte-americano. Os personagens são estudantes, bolsistas, professores, pesquisadores. O xará retoma essa ambientação, demontrando que não se trata de indivíduos marginalizados que ocupam as posições menos privilegiadas da sociedade americana, mas de pessoas cuja formação intelectual permite certa integração à nova realidade cultural.

Assim como Gogol, Jumpa Lahiri descende de pais indianos. Nascida na Inglaterra e criada nos Estados Unidos, a autora discute a condição de se estar entre diferentes culturas sem pertencer inteiramente a nenhuma delas. São móveis as identidades, e essa errância se traduz muito bem na discussão sobre o nome do protagonista da história, que nasce Gogol, vira Nikhil, depois retoma o nome inicial. No centro de tudo, a busca de um nome que dê conta dessa vivência dupla, de pais profundamente marcados pela tradição cultural indiana de um lado, e de outro, de um filho nascido e criado dentro dos valores da sociedade americana. A morte do pai faz irromper em Gogol o desejo de rever esse passado, de mergulhar nas raízes esquecidas para entender um pouco melhor a própria história. Apesar de não ser o imigrante exilado que chora a perda da terra natal, na América é sempre rotulado como “um indiano”. Perfazendo um movimento circular, o filme de Mira Nair se encerra em outra viagem de trem. Agora é o filho quem inicia a jornada, e desta vez, a escolha recai sobre a deriva, a atração pelo mundo em todas as suas possibilidades. Da integração provisória das metades partidas, Ocidente e Oriente, pode surgir o novo Gogol.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Jóias de família - Zulmira Ribeiro Tavares - Companhia das Letras/ 2007


Stefania Chiarelli

Eu havia lido Jóias de Família há alguns anos, dica de uma amiga que entende do riscado. Lembrava que o livro era bom, bem escrito. Na releitura, como era de se esperar, surpresas. A realidade é que o nome de Zulmira Ribeiro Tavares está longe de ser conhecido dos – poucos – leitores de literatura brasileira. Não é badalado, não está na moda. Não traz cenas de violência escatológica ou sexo apimentado. Entretanto, é obra consistente. A escrita é contida, límpida, e a autora conduz com mão segura o fio narrativo.

Mais de quinze anos depois de receber o Jabuti de melhor romance, o livro acaba de ser reeditado. A capa sóbria do volume traz uma fachada cujas portas antigas e um tanto corroídas sugerem o mote: tradição, aparências, segredos familiares. A trama gira em torno da endinheirada Maria Bráulia Munhoz, integrante da elite paulistana e viúva de um juiz, que se vê às voltas com a avaliação de um rubi pertencente há muitos anos ao patrimônio da família. Tudo muito comportado e formal. Entretanto, a escritora paulista escolhe cortar com lâmina fina a carne dessas relações marcadas pela hipocrisia e vai dissecando o quanto de fingimento há nessa vida socialmente aceitável.

O rubi é de vidro; o casamento, de fachada. A tradição é inventada. O pacto de falsas aparências é o cimento de todas as relações, seja entre patroa e empregada, entre marido e mulher, ou entre a tia e o sobrinho-secretário. Não é à toa que uma das diversões prediletas do casal era assistir a encenações teatrais de comédias leves: o paralelo entre a farsa, o fingimento do palco encontra eco em todos os aspectos da vida dessas pessoas.

Em torno do rubi falso giram outros acordos: o do marido homossexual que necessita de um casamento sólido para encobrir as preferências sexuais, o da doméstica servil tratada “como se fosse da família”, o do joalheiro que aceita referendar o engodo da jóia falsificada. Entre cortinas, cisnes de Murano, pétalas de flores e jóias sintéticas se dá o enredo. O apartamento de Maria Braúlia é o palco íntimo dessa encenação, demonstrando o quanto esses personagens habitam uma esfera autônoma, marcada pelo pouco interesse pelo mundo exterior. A não ser quando esse universo invade seus territórios, a exemplo da empregada doméstica e sua sobrinha.

Um dos muitos méritos da obra é mostrar que a hipocrisia é um jogo que interessa a todos os beneficiários da farsa. Ninguém é vítima ingênua. Maria Braúlia, que a princípio surge como uma tolinha manipulada pelo noivo, aos poucos se acomoda muito bem ao papel de esposa ideal que lhe é destinado, movendo-se com desenvoltura nessa cena e encarregando-se de perpetuar o mascaramento:“ Ainda assim, por longo tempo, lhe sobrou alguma dúvida a respeito de tudo aquilo, pois os que sofrem a ação da mentira, tanto quanto os que as inventam, mentem também para si mesmos e defendem-se dos efeitos devastadores da verdade inoculando em si próprios, regularmente, pequenas doses de ilusão”, afirma o narrador.

É com volúpia que Maria Braúlia Munhoz cultua a jóia. Se falsa ou verdadeira, já não importa: é um rubi graúdo, “bom para ser segurado na concha da mão (...). Morno, macio, uma gota de geléia de amora, uma gota de sangue com uma estrela de luz dentro. Uma maravilha”. Como em O nome do bispo - outro livro da autora - Zulmira Ribeiro Tavares destila sua ironia ao tematizar a decadente aristocracia paulista. Partindo do detalhe, do quase insignificante, aponta o dedo para a ferida ética de uma sociedade habituada à dissimulação.
(texto originalmente escrito para o blog Paisagens da crítica, de Júlio Pimentel)